A transformação digital dos sistemas de identificação na América Latina entrou em uma fase decisiva. Em 2025, a região encontra-se em um momento de transição entre os documentos de identificação físicos tradicionais e as novas soluções de identidade digital, impulsionadas por tecnologias como carteiras móveis (wallets) e credenciais verificáveis. Embora os avanços sejam notáveis, o panorama ainda é heterogêneo, com diferenças significativas entre os países em termos de regulamentação, adoção e maturidade tecnológica.
Um contexto regulatório em evolução
Em nível global, o Regulamento eIDAS 2.0 da União Europeia representou um marco na definição de padrões para a identidade digital, estabelecendo as bases para a Carteira Europeia de Identidade Digital (EUDI Wallet). Esse modelo, baseado em credenciais verificáveis e no controle do cidadão sobre seus dados, está servindo de referência para muitos países no mundo — especialmente na América Latina — que buscam digitalizar seus sistemas de identificação de forma segura.
Na América Latina, o marco normativo ainda está em construção. Alguns países avançaram na digitalização de seus documentos de identidade, enquanto outros se encontram em fases preliminares de exploração ou desenho institucional. A falta de uma regulamentação regional harmonizada dificulta a criação de ecossistemas digitais transfronteiriços, embora se observem esforços de convergência inspirados no modelo europeu.
A Colômbia foi pioneira ao lançar o aplicativo “Cédula Digital” com validade legal, permitindo essencialmente a identificação física dos cidadãos para viagens domésticas. O Chile dispõe tanto do aplicativo “Cédula Digital”, que oferece uma representação digital do documento físico, quanto do “Clave Única”, um aplicativo móvel vinculado à cédula que facilita o acesso online a serviços públicos e alguns privados. O México está iniciando o despliegue da CURP biométrica como sua identidade nacional digital, que será integrada à plataforma de autenticação do Estado, “Llave MX”.
Na Argentina, existe o aplicativo “Mi Argentina”, que permite a identificação física e também portar a carteira de motorista, a credencial de vacinação e outros documentos.
O Brasil, por sua vez, lançou o projeto “Identidade Digital Gov.br”, que busca unificar documentos em um aplicativo móvel, com integração progressiva em serviços públicos e bancários.
O Peru, pioneiro na entrega de um documento de identidade com chip, está dando passos importantes com o desenvolvimento de plataformas governamentais integradas, cujo uso em trâmites digitais começa a se consolidar por meio do aplicativo móvel “ID Perú”.
Costa Rica e Uruguai avançaram na implementação de plataformas de autenticação digital (como o sistema de identidade digital do Tribunal Supremo de Eleições na Costa Rica ou o sistema de identidade eletrônica no Uruguai), embora ainda não tenham lançado Wallets de identidade completos. Panamá, Paraguai e Bolívia iniciaram processos para disponibilizar aplicativos móveis que permitam uma versão digital do documento físico.
O Equador, por sua vez, lançou recentemente sua cédula digital vinculada a serviços públicos, permitindo uma representação digital do documento físico.
Em El Salvador, existe a plataforma de Identidade Digital gerida pelo Registro de Pessoas, que realiza um KYC para a criação da conta dos cidadãos.
Por outro lado, Guatemala, Nicarágua e República Dominicana ainda não possuem uma identidade digital disponível para a população, embora na República Dominicana haja uma iniciativa em andamento.
Em Honduras, está sendo implementada uma carteira digital em colaboração com o Registro Nacional de Pessoas. Até o momento, não se sabe se o esquema seguirá padrões internacionais ou se será uma solução de âmbito local.
Em nível regional, também se observam iniciativas para criar consenso sobre o tema, como o projeto de identidade digital da Rede Interamericana de Governo Digital (Rede GEALC), que busca, por meio da cooperação, estabelecer as bases para o desenvolvimento de sistemas de identificação digital transfronteiriços entre os países membros. Isso permitiria que os cidadãos acessassem serviços digitais de outros países com a mesma validade que em seu próprio território.
Em todos esses países, o debate sobre identidade digital está ganhando relevância, e observa-se uma crescente vontade política de avançar para modelos mais seguros, interoperáveis e centrados no cidadão. No entanto, na maioria dos casos, ainda se trata de representações digitais do documento físico, com muito a percorrer até atingir um verdadeiro ecossistema de identidade digital, como o buscado na União Europeia com o Regulamento eIDAS 2.0.
Adoção cidadã: entre expectativa e realidade
A percepção dos cidadãos sobre as novas formas de identidade digital está dividida. Vamos nos concentrar nos países com soluções já disponíveis para a população.
Na Colômbia, por exemplo, a cédula digital foi adotada por mais de um milhão de pessoas, mas seu uso ativo ainda é limitado. A integração com serviços públicos e privados está em desenvolvimento e, embora ainda existam desafios, os esforços institucionais estão criando bases para uma adoção mais ampla.
No Chile, a nova cédula eletrônica foi bem recebida pelos cidadãos, mas sua funcionalidade digital ainda está em fase de implantação. No entanto, o “Clave Única” é amplamente difundido e utilizado pela população.
No México, os pilotos de credenciais digitais despertaram interesse, especialmente em universidades e hospitais, mas a adoção em massa depende da consolidação de uma infraestrutura nacional interoperável e da nova plataforma biométrica.
Na Argentina, o DNI eletrônico é amplamente conhecido, mas seu uso como credencial digital no celular ainda não está disseminado. Atualmente, muitos trâmites ainda exigem o documento físico, embora se observe uma tendência crescente de incorporação do DNI eletrônico como método de autenticação em serviços digitais.
No Brasil, o aplicativo “Gov.br” ganhou popularidade, com milhões de usuários registrados, mas a identidade digital ainda não substitui totalmente o documento físico em trâmites presenciais.
O Peru distribui documentos de identidade com chip há anos, mas a ativação digital e o uso em serviços públicos ainda é limitado. Na Costa Rica, o sistema de autenticação digital do TSE foi adotado por entidades financeiras e alguns serviços públicos, mas ainda não existe um Wallet cidadão interoperável. O Uruguai avançou significativamente em autenticação digital com seu sistema de identidade eletrônica, mas a integração com credenciais móveis ainda está em desenvolvimento.
No Equador, os planos de digitalização estão em andamento, mas a adoção cidadã dependerá da implementação técnica e da integração com serviços públicos e privados.
Em geral, podemos concluir que a chave para avançar está na criação de valor tangível para o cidadão: que a identidade digital não seja apenas mais segura, mas também mais útil e acessível no dia a dia. Isso implica que governos e empresas devem trabalhar conjuntamente para garantir que as credenciais digitais sejam aceitas em trâmites reais, desde a abertura de conta bancária até a validação de identidade em serviços de saúde ou transporte.
Perspectivas para 2025 e além
A identidade digital na América Latina está avançando, mas ainda enfrenta desafios estruturais. A chave para sua consolidação será a colaboração não apenas entre governos, mas também envolvendo empresas de tecnologia e organismos internacionais, além da criação de marcos normativos que garantam interoperabilidade, segurança e confiança.
Nesse contexto, soluções que combinem conformidade regulatória, facilidade de integração e experiência do usuário terão vantagem competitiva. A região acompanha de perto o lançamento do EUDI Wallet na Europa, e muitas iniciativas locais alinham-se a esse modelo. Se adaptadas com sucesso às particularidades locais, a América Latina pode se tornar uma referência global em identidade digital inclusiva, segura e centrada no cidadão.
Na Europa, o lançamento do EUDI Wallet — a Carteira Europeia de Identidade Digital — está marcando um antes e depois na forma como os cidadãos gerenciam suas credenciais pessoais. Impulsionado pelo Regulamento eIDAS 2.0, este modelo estabelece princípios claros de soberania do usuário, interoperabilidade entre países e padronização técnica, permitindo que cada cidadão possa se identificar, assinar documentos e acessar serviços públicos e privados com total segurança a partir de seu dispositivo móvel. A União Europeia definiu um marco comum que inclui requisitos de certificação, formatos de credenciais verificáveis e mecanismos robustos de autenticação, garantindo confiança jurídica e técnica em todo o território comunitário.
Essa abordagem europeia pode servir de referência para outras regiões, incluindo América Latina, África e Ásia, que buscam modernizar seus sistemas de identidade sem começar do zero. A padronização favorece a interoperabilidade transfronteiriça, reduz custos de implementação e permite que fornecedores tecnológicos trabalhem sobre uma base comum, abrindo possibilidades para facilitar comércio, movimentação de pessoas e capitais, entre outros. Além disso, ao focar no controle cidadão sobre os dados, o modelo europeu promove a proteção dos dados pessoais dos cidadãos, oferecendo uma identidade digital ética, inclusiva e respeitosa da privacidade. Se os países latino-americanos conseguirem adaptar esses princípios aos seus contextos locais, poderão acelerar a adoção de soluções seguras e eficientes, fomentando a confiança digital e a transformação de serviços públicos.
Além disso, o fato de Europa e América Latina compartilharem uma tradição jurídica comum baseada no direito latino — centrado na codificação, proteção de direitos fundamentais e primazia do interesse público — representa uma vantagem adicional para adotar marcos como o EUDI Wallet, facilitando a harmonização normativa e cultural em torno de princípios como soberania do cidadão, proteção de dados pessoais e interoperabilidade institucional.
É importante destacar que, até agora, essas iniciativas na América Latina concentraram-se quase exclusivamente no âmbito governamental, deixando o setor privado em segundo plano. Diferente da abordagem europeia, onde existem diretrizes claras para a participação ativa de empresas privadas na identidade digital, na América Latina ainda não foram definidos marcos regulatórios nem incentivos concretos para fomentar a adoção e adaptação desses sistemas em bancos, seguradoras, e-commerces ou outros serviços. Isso limita o verdadeiro potencial da identidade digital como ferramenta de transformação transversal, pois enquanto não houver políticas que promovam interoperabilidade e confiança também no setor privado, as credenciais digitais continuarão sendo soluções isoladas, sem impacto significativo na economia digital regional. Para que a identidade digital seja um motor de inovação e competitividade, será imprescindível avançar para regulamentações e modelos colaborativos que incluam empresas no ecossistema, permitindo que as pessoas aproveitem plenamente os benefícios de uma identidade digital universal, segura e aceita em todos os aspectos da vida cotidiana.